Hoje a noite, o canal GNT da net exibirá um documentário sobre o funk do Rio de janeiro, estilo musical das favelas bastante criticado pela natureza chula, simplória e apelativa das letras.
Há cerca de um mês, o mesmo assunto foi tema de um debate orkutiano num forum de que participo. Entre opiniões favoráveis e depreciativas, comentei sobre um lado da questão que me parece pertinente sempre que me deparo com certas comparações constantemente feitas entre o funk e outros ritmos nascidos das classes menos favorecidas. Segue o comentário.
Lembro-me de uma participação da negra Li na MTV, em que, perguntada por Penélope se ela, como cantora e como mulher negra, se sentia, de alguma forma, representada em manifestações como o funk carioca; Negra Li até admitiu que gostava do ritmo, mas alegou não se identificar com as letras. Noutro programa, João Gordo criticou Mr.Catra, alegando que suas letras não diziam nada, comparando-as às dos Raps dos guetos de SP, que são mais inteligentes.Aliás, é comum fazerem esta comparação entre o funk "burro" das favelas cariocas e o rap "inteligente" dos guetos paulistas. Posso até concordar em parte com algumas dessas colocações, mas acho injusto cobrar do funk, por exemplo, um comprometimento social ou uma intelectualidade na composição das letras. Confesso que não entendo de música então me perdoem se digo alguma asneira, mas a impressão que tenho é a de que o rap é essencialmente letra com ritmo, ou seja, VOCÊ DIZ ALGUMA COISA musicalmente. O Rap é político na própria essência, e o rap de SP me parece ainda bastante ligado às origens do rap essencialmente político e contestador que explodiu nos states ao fim dos anos 80 e início dos 90.
O funk do rio é uma coisa mais dançante. É ritmo com (ou sem) letra, ou seja, a letra está lá para trabalhar para a batida, que é verdadeira essencia da coisa. Pode-se fazer um funk intelectual ou político, como os daquela cantora estrangeira MIA (acho que é esse o nome), por exemplo, mas ele será sempre mais dançante e vibrante do que discursivo, racional ou reinvindicador. Cobrar isso do funk, tendo o rap ou o punk rock como parâmetros, é ignorar certas diferenças fundamentais na própria essência e vontade intrínseca desses estilos.Claro que as letras do funk poderiam ser, digamos assim, menos toscas e repetitivas do que aquelas que conhecemos. Na verdade, há grupos de funk que já se enveredam por outras vertentes (como tb já houve lá nos primordios do estilo). Uma vez ouvi uma letra de funk bem simples, mas muito engraçada, sobre um dia de cão na vida de um sujeito (acho que era isso), e ai pensei: Talvez esse seja um caminho para esse funk moderno sem ter de apelar tanto para a putaria desenfreada e as repetições sem sentido, mantendo a simplicidade e a natureza da coisa. Não sei....
A impressão que tenho é a de que o funk faz uma espécie de política às avessas. Ele não realiza reinvindicações sociais diretas e nem brada por mudanças profundas como faz o rap nacional, como também não procura estabelecer elos mais pacíficos e construtivos com o mundo dos "incluídos" como no caso do samba, do reggae e do pagode. O funk me parece uma espécie de vingança dos excluídos, que hoje nos alimentam, nos chocam e nos contagiam com o fruto do crime que cometemos por décadas. Se os rappers falam de problemas sociais, os funkeiros os mostram nus e crus no próprio fruto de sua "arte". "Gostou não, preiboy! Então toma que o filho é teu!"O funk encarna uma faceta de nossa era que não pertence apenas à favela. Não é a toa que faz tanto sucesso com a classe média, pois uma grande parte dela nada em lagos semelhantes, afinal, a miséria de nossa era não é apenas material ou cultural, é ideológica, espiritual, emocional. O funk, como tantas manifestações de nosso tempo, representa uma espécie de escárnio aos ideais modernistas de progresso. O funk não está preocupado em resolver problemas porque aprendeu a viver dentro deles e hoje enxerga nossas "soluções" como empecilhos. O funk não lida com grandes narrativas coletivas, mas lutas particulares de sobrevivência. Sequer depende da aceitação da classe média, pois sempre teve um grande mercado auto-sustentável em seu terreno de origem, e por isso sobrevive a qualquer modismo, ressurgindo das cinzas sempre. O funkeiro é um sujeito que está cagando para nossa caridade, nossos valores, nossas regras, nossa moral. Aprendeu a viver sem elas.
VULCAN MISTI
6 years ago