Saturday, May 12, 2007

Sobre comparações entre Rap e Funk no Brasil

Hoje a noite, o canal GNT da net exibirá um documentário sobre o funk do Rio de janeiro, estilo musical das favelas bastante criticado pela natureza chula, simplória e apelativa das letras.

Há cerca de um mês, o mesmo assunto foi tema de um debate orkutiano num forum de que participo. Entre opiniões favoráveis e depreciativas, comentei sobre um lado da questão que me parece pertinente sempre que me deparo com certas comparações constantemente feitas entre o funk e outros ritmos nascidos das classes menos favorecidas. Segue o comentário.




Lembro-me de uma participação da negra Li na MTV, em que, perguntada por Penélope se ela, como cantora e como mulher negra, se sentia, de alguma forma, representada em manifestações como o funk carioca; Negra Li até admitiu que gostava do ritmo, mas alegou não se identificar com as letras. Noutro programa, João Gordo criticou Mr.Catra, alegando que suas letras não diziam nada, comparando-as às dos Raps dos guetos de SP, que são mais inteligentes.Aliás, é comum fazerem esta comparação entre o funk "burro" das favelas cariocas e o rap "inteligente" dos guetos paulistas. Posso até concordar em parte com algumas dessas colocações, mas acho injusto cobrar do funk, por exemplo, um comprometimento social ou uma intelectualidade na composição das letras. Confesso que não entendo de música então me perdoem se digo alguma asneira, mas a impressão que tenho é a de que o rap é essencialmente letra com ritmo, ou seja, VOCÊ DIZ ALGUMA COISA musicalmente. O Rap é político na própria essência, e o rap de SP me parece ainda bastante ligado às origens do rap essencialmente político e contestador que explodiu nos states ao fim dos anos 80 e início dos 90.



O funk do rio é uma coisa mais dançante. É ritmo com (ou sem) letra, ou seja, a letra está lá para trabalhar para a batida, que é verdadeira essencia da coisa. Pode-se fazer um funk intelectual ou político, como os daquela cantora estrangeira MIA (acho que é esse o nome), por exemplo, mas ele será sempre mais dançante e vibrante do que discursivo, racional ou reinvindicador. Cobrar isso do funk, tendo o rap ou o punk rock como parâmetros, é ignorar certas diferenças fundamentais na própria essência e vontade intrínseca desses estilos.Claro que as letras do funk poderiam ser, digamos assim, menos toscas e repetitivas do que aquelas que conhecemos. Na verdade, há grupos de funk que já se enveredam por outras vertentes (como tb já houve lá nos primordios do estilo). Uma vez ouvi uma letra de funk bem simples, mas muito engraçada, sobre um dia de cão na vida de um sujeito (acho que era isso), e ai pensei: Talvez esse seja um caminho para esse funk moderno sem ter de apelar tanto para a putaria desenfreada e as repetições sem sentido, mantendo a simplicidade e a natureza da coisa. Não sei....



A impressão que tenho é a de que o funk faz uma espécie de política às avessas. Ele não realiza reinvindicações sociais diretas e nem brada por mudanças profundas como faz o rap nacional, como também não procura estabelecer elos mais pacíficos e construtivos com o mundo dos "incluídos" como no caso do samba, do reggae e do pagode. O funk me parece uma espécie de vingança dos excluídos, que hoje nos alimentam, nos chocam e nos contagiam com o fruto do crime que cometemos por décadas. Se os rappers falam de problemas sociais, os funkeiros os mostram nus e crus no próprio fruto de sua "arte". "Gostou não, preiboy! Então toma que o filho é teu!"O funk encarna uma faceta de nossa era que não pertence apenas à favela. Não é a toa que faz tanto sucesso com a classe média, pois uma grande parte dela nada em lagos semelhantes, afinal, a miséria de nossa era não é apenas material ou cultural, é ideológica, espiritual, emocional. O funk, como tantas manifestações de nosso tempo, representa uma espécie de escárnio aos ideais modernistas de progresso. O funk não está preocupado em resolver problemas porque aprendeu a viver dentro deles e hoje enxerga nossas "soluções" como empecilhos. O funk não lida com grandes narrativas coletivas, mas lutas particulares de sobrevivência. Sequer depende da aceitação da classe média, pois sempre teve um grande mercado auto-sustentável em seu terreno de origem, e por isso sobrevive a qualquer modismo, ressurgindo das cinzas sempre. O funkeiro é um sujeito que está cagando para nossa caridade, nossos valores, nossas regras, nossa moral. Aprendeu a viver sem elas.



Sunday, May 06, 2007

Xuxa politicamente correta

Navegando pelo Youtube como de costume, eis que me deparo com trechos do programa que Xuxa Meneghel fez para a TV americana em meados de 93, nos tempos em que tentava ampliar seus poderes de rainha para o lado saxônico do continente, e, conseqüentemente, para o resto do mundo.



(Alguns trechos do "Xou da Xuxa" americano (lá chamado apenas de "Xuxa") podem ser encontrados aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui)

Pouco sei sobre detalhes deste programa. Pelos videos postados, vemos que o show procurava passar um clima de aldeia global, com bandeiras de vários países tremulando em meio ao público infantil. Seu formato e características não diferiam muito daquele com o qual nos acostumamos anos antes. Personagens em forma de bicho, brincadeiras de palco, crianças em volta, paquitas. Um urso panda dividia o palco com a apresentadora, assumindo o microfone na hora de fazer explicações mais complicadas sobre as brincadeiras, já que xuxa ainda não dominava totalmente a língua inglesa.

O que mais me chamou a atenção foi a forte diversidade racial do programa, significativamente superior àquela vista no Brasil, contando, inclusive, com a presença de uma paquita negra. Sabemos, claro, não se tratar de uma diversidade espontânea, mas meticulosamente premeditada para angariar simpatia das "minorias" e preencher requisitos politicamente corretos para elaboração de material infantil em solo americano. Mesmo assim, este quadro étnico - tão diversificado quanto o quadro étnico populacional brasileiro - não deixa de nos parecer incomum, visto que não estamos tão acostumados a vê-lo refletido em nossas telinhas. A multiracialidade de programas como o "Xou da Xuxa" na versão nacional tinha tendencias caucasianas, "pró-claras", paquitas brancas e loiras, crianças negras sendo sempre exceções em volta do palco. O racismo da TV nacional revela um ideal estético pós-escravista, ainda arraigado em preceitos coloniais, um brasil "mítico" mais branco do que negro, mais claro do que escuro, mais "europa morena" do que "indo-áfrica clara". A TV e a publicidade, ao contrário do cinema, não buscam alcançar verdades, mas alimentar mitos, aspirações ainda fortes no inconsciente coletivo de nossas classes média e alta, sonhos que acabam por contaminar também a mente dos desfavorecidos, rejeitados por uma multiracialidade que se quer mais clara, de olhos mais verdes, mais azuis, com cabelos mais lisos; a multiracialidade de "caprichos", novelas, "playboys" e "coleguinhas" do Luciano Huck, uma miscigenação que pouco condiz com as reais proporções étnicas da nação.



O Brasil da TV exalta o Brasil da realidade como algo abaixo dele, algo para ser reverenciado enquanto ocupa seu devido lugar de notícia de jornal, documentário, "agora ou nunca", "o povo fala" e "se vira nos trinta". Na telinha, a representatividade estética do "povo" só ganha status de maioria quando participa como "povo", virando exceção ou "acessório" no terreno dos grandes referenciais de desejo coletivo, o que só contribui para minar a auto-estima e os sonhos daqueles que se vêem pouco refletidos no "mundo ideal da TV".

Mudanças significativas vêm ocorrendo nesse sentido durante a última década, inclusive no que diz respeito ao trabalho da "rainha dos baixinhos", mas tais progressos são pequenos perto do que ainda precisa ser elaborado. Sabemos o quanto falta para nossa diversidade "espontânea" da TV atingir níveis ao menos próximos de nossa realidade e, ironicamente, da multiracialidade fictícia que alguns canais americanos politicamente corretos propagam.

(Alguns trechos do "Xou da Xuxa" nacional podem ser encontrados aqui, aqui, aqui ou aqui)