Tuesday, April 24, 2007

A matrix americana

Como tantos jornalistas, pseudo-colunistas, experts de plantão e palpiteiros orkutianos ao longo da semana, meto também minha colher no caso Cho seng-Hui, o coreano da universidade tecnológica de Virginia, que num dia de fúria premeditado, decidiu assassinar 32 estudantes, sublimando assim aquele desejo secreto partilhado com boa parte de seus compatriotas. Dar uma bela porrada no sistema.



Vejo muita gente fazendo comparações entre este tipo de crime e os que comumente ocorrem na guerra do tráfico do Rio de Janeiro ou nas escolas de classe baixa no Brasil.
Há correlações, claro, mas, sobretudo, diferenças cruciais que jamais poderiam ser ignoradas. "Spree killing", que é como este tipo de violência é chamado na terra do tio sam, e "Serial Killing" são bem menos comuns por aqui do que por lá, onde a panela de pressão social estoura com muito mais freqüencia entre cidadãos comuns de classe média, então transformados em criminosos do dia para a noite. A violência das favelas daqui tem maior relação com os problemas de gangues dos guetos de lá ou a violencia freqüente das escolas pobres americanas onde alunos recebem um péssimo serviço e se vêem fortemente próximos à criminalidade desde os primeiros anos de vida.

Casos como Virginia Tech e Columbine possuem elementos únicos em suas origens, presentes em qualquer parte do mundo, porém mais visíveis em certos países ricos do ocidente, e ganhando destaque especial nos Estados Unidos da América.



Especialistas de cada canto continuam emitindo opiniões a respeito, algumas bem razoáveis. Fala-se da facilidade em se adquirir armas de fogo e do fascínio que elas exercem sobre os norte-americanos. Fala-se da "falta de toque" e de "calor humano" nos contatos diários entre seguidores de culturas protestantes. Discute-se o estado mental dos criminosos, o consumo de celebridades instantâneas, a glamurização, espetacularização ou banalização da violência, sexualidade reprimida, videogames impróprios, filmes violentos, música "degenerada", etc. Uma psicóloga da PUC chamada Sandra Dias chegou a destacar durante o Bom Dia Brasil de terca-feira na Rede Globo a relevância do fator consumismo que hoje assume a condição de sujeito no imaginário estadunidense, transformando, sob tal ótica, o crime de Cho Seng-Hui num ato de heroísmo, mesmo que "negativo". Dito isso, o entrevistador da emissora corta este depoimento para ouvir o testemunho de um brasileiro que esteve no prédio da universidade durante o tiroteio. Retoma a entrevista em seguida, levando Sandra a falar sobre o fácil acesso à armas de fogo e então encerra o assunto, impossibilitando-a de completar aquele pensamento anterior. Na quarta-feira, todo o conteúdo da entrevista foi cortado do programa no site Globo.com, como se ela sequer tivesse começado.




Edições à parte, penso que muitas dessas opiniões podem nos ajudar a elucidar causas pertinentes enquanto outras só conseguem confundir ao imbuir culpa em conseqüências, sintomas, como se neles estivesse a origem da doença. Seria como culpar uma letra do Marilyn Manson pelo suicídio do fã. Ambos, letra e suicídio, são elementos posteriores de um mesmo sistema fenomenológico e possuem raízes comuns. Raízes nascidas justamente na "caretice" de seus "santos" detratores.

Longe de mim tentar desvendar este mistério por inteiro, mas creio que uma peça importante do quebra-cabeças seja justamente a relação fechada que um cidadão americano comum (especialmente no que diz respeito às tradições culturais difundidas pelos fundadores do país e hoje presentes, em maior ou menor grau, nas demais "americas" que com seus descendentes interage) desfruta com aquilo que considera "as regras do jogo da vida".

Cho Seng-Hui realizou o desejo secreto da maioria dos compatriotas. Ele "deu um soco", "um tiro" no sistema fechado de "como as coisas são e devem ser" na América. Desde a escola, um americano comum de classe média está inserido numa imensa rede de divisões e sub-divisões analíticas e deterministas que o classificarão e "ranquearão" perante os demais. Seus teste de Q.I., notas no ano letivo, deslizes comportamentais, atividades extra-curriculares, "raça", sexo, aparência, roupas, condição social, etc, servirão para enquadrá-lo no sistema acadêmico e no sistema social, sendo que ambos possuem regras próprias, mas fortemente inteligadas, seguindo princípios competitivos semelhantes. Seu "nível de popularidade" determinará onde poderá se sentar no refeitório, com que alunos pode ou não interagir, a que festas pode ir. Se por acaso o "nerd invisível" da classe consegue "dar uns amassos" na líder de torcida que namorava o capitão do time de futebol, ele é automaticamente promovido e realocado, muda de mesa, de hábitos, de amigos, de status na vida. Se Johnattan Mason está fumando maconha e é flagrado, precisa passar uns meses na classe dos desajustados para se reabilitar e voltar à parte sadia da máquina, "salsichas defeituosas classe C para procedimento FGF". O deslize, claro, permanecerá em seu currículo para futuras etapas de avaliação, classificação e ranqueamento, quer na escola, na universidade, no emprego ou nas relações sociais, podendo minar cumulativamente sua marcha rumo ao shangri-lá do SUCESSO PESSOAL. Cada sistema complementa o anterior, para a frente, para os lados, para cima e para baixo, girando sempre em torno de imperativos pragmáticos, analíticos e consumistas. Cada etapa da existência tem suas regras e objetivos racionalmente inteligíveis, "dar uma de rebelde pode ser tolerável e até bonito na adolescência, mas é inadmissível para um homem maduro", "se come a mina de 17, vai preso como pedófilo pervertido; se espera um mês até ela fazer 18, é um sujeito sadio, normal e cumpridor dos deveres". O americano aprende a pensar a vida dessa forma, como um grande sistema racional de causa e efeito que opera em freqüência única de caráter linear, reducionista e absurdamente simplório, mesmo quando comparado aos sistemas reducionistas de nações ocidentais que também sofrem desse mal. A Matrix americana só consegue pensar o indivíduo dentro ou fora, e o indivíduo só pode se pensar dentro ou fora dessa Matrix. Não há fuga sem rompimento. Não há "jeitinho brasileiro", saídas criativas que o permitam fugir e estar simultaneamente. Não há sentimento de infinitude ou subversão sem confronto.




Se não consegue cumprir as metas sociais estabelecidas, se não consegue ganhar destaque em seu nicho ou em qualquer outro, se não é capaz de triunfar dentro daqueles principios consumistas americanamente aceitos como sinônimos de sucesso, o sujeito ganha status de "perdedor', do individuo que precisa existir para endossar os méritos de quem "chegou lá", "the people who made it", e se esse "perdedor" não encontra uma forma de se realizar dentro dos papéis que seu status lhe oferece, se não é capaz de sobreviver como tal ou ao menos criar alternativas usando as ferramentas disponíveis, torna-se ele uma espécie de bomba-relógio que pode implodir em suicídio ou explodir em transtornos psíquicos capazes de culminar nos fenômenos de que falamos: serial Killing, spree Killing ou simplesmente "um dia de fúria a lá Michael Douglas".



Não é a toa que quando têm uma chance para perder a linha - geralmente em épocas da vida e lugares premeditados, como no caso dos springbreaks universitários - os americanos vão fundo, perdem a linha mesmo, e da maneira mais desengonçada possível, já que não estão acostumados à constantes permissividades. Porra louquice fora de época e lugar tem de ser feita longe da polícia, senão rola cadeia da braba por perturbação da ordem. Muitos heróis modernos do cinema americano não hesitam em mostrar certo repúdio àquela ordem social por que devem lutar, fazendo tudo do seu jeito, desferindo socos e tiros como e quando querem, dando porrada no sistema a torto e a direito, rindo da cara dos burocratas, dos oficiais, dos comissários de polícia inaptos em controlá-los, dos carangos de milhões de dólares que pegam emprestado e depois destroem, justificando-se com um pedido de desculpas e um sorriso maroto. Esse é o escapismo do cidadão americano comum que vive envolto em regulamentos e manuais de instruções, mesmo onde eles não deveriam existir. Até o nerd Lewis Skolnick precisou dar um soco no líder Alfa-Beta para deixar de ser LOSER. George McFly só largou a vida de bunda-mole quando socou Biff - representante-mor da ordem social do colégio - bem no meio das fuças.
Rambo, Cobra, John McLaine, os personagens do Schwarzenneger... eles não apenas simbolizam o belicismo conquistador impassível do povo americano, mas também são a vontade do indivíduo de se rebelar contra a máquina. Seus heróis e seus criminosos pervertidos possuem desejos em comum, e não é a toa que estão ficando cada vez mais parecidos na crueza do caráter, diferenciando-se meramente na eficiencia com que matam (vide Blade, Bad Boys II e, pasmem, Matrix). Ambos adorariam destruir a casa branca e o world trade center juntos. Seriados como CSI mostram os mocinhos investigadores quase se regozijando enquanto conversam sobre os detalhes morbidos de cada crime. São o mesmo tipo de gente, mocinhos e bandidos. Psicopatas. Não foi a toa que um ator da série emitiu o seguinte comentário: "Os caras maus fazem o que os caras bons sonham." Caras bons? Não seriam psicopatas enrustidos?




Não digo que esse tipo de problema inexista no Brasil, mas aqui as frestas para respirar são infinitas e a criatividade abunda em cada canto. Fugir dos manuais é inevitável. Seguí-los a risca é complicado. Se nosso jeitinho brasileiro gera mil problemas novos a cada solução apresentada, também nos propicia mil soluções ante cada problema aparentemente intransponível, mesmo que os abismos sociais sejam mostruosos, pois se para cima há uma imensa cerca de arame farpado, para os lados há terreno fértil onde a criatividade consegue fluir e gerar saídas alternativas, novas "freqüências existenciais", felicidade e vitalidade onde isso não deveria existir.

Nosso caldeirão de heranças culturais aliado a rituais como o carnaval permitem que interajamos com a vida de modo mais maleável, menos determinista, sem esquemas e verdades prontas para cada etapa da vida. No Brasil das injustiças sociais acachapantes, do jeitinho, do "deixa a vida me levar", pode-se sair e ficar na Matrix simultaneamente com bem mais facilidade, já que ela funciona pela sobreposição de "freqüências existenciais múltiplas", "mundos paralelos" que se fundem num mesmo habitat e num mesmo sujeito cultural, confundindo nossos desejos conscientes de linearidade racionalista com uma complexidade social infinita quase impossível de diagnosticar. Muitos brasileiros odeiam que certas leis jurídicas não "colem" na vida prática, que "não pisar na grama" não signifique "não pisar na grama", que chegar as quatro horas da tarde num lugar pode significar quatro e dez, quatro e vinte, ou quatro horas mesmo, que nossa liberdade de expressão ostente "poréns" incomodos e incompreensíveis pertencentes ao terreno do inconsciente coletivo em determinadas situações, e que miseráveis consigam ser felizes na favela em meio à guerra do tráfico e falta de oportunidade enquanto ricos com tudo na mão vivem se drogando e tomando anti-depressivos. Até onde é bom ou ruim viver numa sociedade de regras invisíveis, multilaterais e mutantes, não sei. Se os americanos têm seus spree killers, temos aqui nosso conformismo endêmico. Se a unilateralidade deles implica em altíssimos preços a pagar, nosso "jeitinho" também não vem de graça.

Ressalto outra vez que não pretendo, através desse texto, estabelecer um diagnóstico para o caso Virginia Tech, mas apenas apontar fatores que certamente exercem peso significativo nos quadros sociais geradores desse tipo de crime. Tampouco alego que a criatividade não se faça presente no histórico cultural americano. Seria de absurda leviandade afirmar isto, até porque a construção dos Estados Unidos também passa pela absorção de influências que não as de seus fundadores, tendo decerto as de origem africana e latina exercido um papel vital na geração de trilhas que alimentem impulsos criativos. Todavia, não é leviano dizer que hoje os Estados Unidos respiram um ambiente cultural onde a criatividade recebe pouquíssimo incentivo para se desenvolver livre no espírito das pessoas. Se por acaso ela consegue resistir à essa vontade imensa de castrá-la e "sai do armário", tende a emergir maculada, ferida, contaminada pelo instinto americano de morte, refletindo os recalques de uma nação repressora, procurando pelo negativo, pelo agressivo, pela violência, competitividade e perversão, sendo essencialmente crítica e pessimista, mesmo quando se pensa positiva, pois lá a criatividade positivizada é exceção. Aqui é a regra.


Wednesday, April 18, 2007

A "ressurreição" de Doris Giesse

Quando fui notificado do acidente envolvendo a "ex-estrela de TV" Doris Giesse, ainda sem saber se ela estava bem ou não, preocupei-me com a dita cuja como todo mundo e também compreendi o que levaria uma mulher a arriscar a própria vida em prol de um gatinho de estimação, afinal, tenho três em casa e sei bem o que é se apegar a um animal tão "fofo".

Felizmente, ela não sofreu ferimentos sérios, e fico pensando se, sob um certo ângulo, o episódio não teria sido benéfico à carreira da ex-estrela, que já admitiu em entrevista seu desejo de voltar à TV.

Ironicamente (não sou desses que acreditam que ela teria tentado se matar ou pulado propositadamente imaginando que não se machucaria de modo sério), a "quase tragédia" poderá lhe servir de catapulta para um retorno à condição de celebridade. Bem ou mal, Doris foi redescoberta pela mídia e seus recentes 15 minutos de (re) fama poderão - Quem sabe? - render boas capas de revista, participações na TV e, claro, "din din" em caixa.

Esperemos, no entanto, que outras ex-celebridades não vejam nisso um atalho para ressuscitar suas carreiras.


Saturday, April 14, 2007

Cleber Machado versão 2.0



Qualquer fã de futebol que acompanha campeonatos regionais e nacionais na globo sabe que Cleber Machado é, há muito tempo, o narrador esportivo número 2 da emissora, o cara que sempre cobre as ausências do "todo poderoso" Galvão Bueno e geralmente transmite os jogos do campeonato paulista, da Taça Libertadores, as "segundas" partidas mais importantes de copa do mundo e boa parte do campeonato brasileiro, juntamente com o "número 3" Luiz Roberto.

Qualquer fã de futebol sabe que Paulo Roberto Falcão é o "primeiríssimo" comentarista da emissora, seguido de Walter Casagrande Junior (não tenho o visto ultimamente. Será que saiu?) e Sérgio Noronha. Arnaldo Cesar Coelho é o número 1 entre os comentaristas de arbitragem, José Roberto Wright o 2 e Renato Marsiglia o 3.




Qualquer fã de futebol sabe que somente o "todo-poderoso primeiro locutor da globo" tem direito pleno de exercer comentários para além de seu ofício narrativo, emitir opiniões pessoais e discutir com os especialistas (quase sempre estando errado) ao longo das transmissões. Cleber Machado e Luiz Roberto não ostentam igual privilégio, atendo-se à relatar o jogo, intermediar o trabalho dos comentaristas e fazer raras, breves e inofensivas colocações pessoais. Até aí, nada de anormal. Naturalmente, ficou um pouco na minha cabeça aquela impressão de que, apesar das constantes asneiras ditas por Galvão Bueno no microfone, talvez ele fosse, e de longe, o mais apto ou o único dos locutores globais com manha, jogo de cintura, conhecimento e pseudo-conhecimento suficiente para emitir opiniões subjetivas sem maiores restrições; que seus dois colegas de ofício talvez reprentassem riscos de credibilidade à emissora, caso resolvessem seguir linha igual, e por isso não o faziam; que Cleber Machado e Luiz Roberto não deviam ter tino jornalístico e bagagem cultural ou futebolística para ficar saindo do "feijão com arroz" o tempo todo, dando a cara para bater, discutindo com os "entendidos" sem gerar um clima amador dentro da cabine de transmissão, e por isso seguiam quase sempre o caminho das pedras enquanto trabalhavam.

Pois bem. Ledo engano.



Faz pouco tempo que adquiri o direito de acessar o canal SPORTV, que funciona como uma filial da Rede Globo, onde boa parte de seu "cast" esportivo desfruta liberdades superiores àquelas concedidas pela emissora mãe em programas jornalisticos e mesas de debate, partilhando-as com especialistas da matriz, da sucursal, e, claro, profissionais futebolísticos e de outros esportes. Como Galvão Bueno (e até com mais constância), Cleber Machado e Luiz Roberto intermediam programas como Arena SporTV e Bem Amigos (este, nas eventuais ausencias do "chefe"). Se Luiz Roberto não faz feio como mediador e desfruta instantes de grata lucidez ao emitir opiniões e debater com convidados e especialistas, Cleber Machado consegue ir além. Sem perder sua discrição marcante, sem pavonear ou apelar para jargões populares de torcedor, o famoso "número dois" das noites de quarta e tardes de domingo revela uma segurança e um conhecimento ímpares quando no gerenciamento de debates e confrontamento com opiniões de especialistas e mesmo técnicos ou jogadores. Não são poucas as vezes em que consegue "solucionar" divergências entre convidados com colocações sagazes, profundas e pertinentes. Não são poucos também os momentos em que interrompe um treinador, um jornalista ou um atleta para discordar do que ele diz, fundamentando, e geralmente muito bem, os motivos dessa discordância. Tudo isso sem jamais abandonar seu papel de mediador, sem tentar aparecer mais do que os convidados, revelando um estilo bem interessante e diferente do de Galvão Bueno, que segue uma linha mais onipresente. Cleber Machado, em seu estilo "semi-mineiro", mostra ao espactador do Sportv um lado colorido e interessante pouco conhecido dos que só o presenciam na Rede Globo. Se, como locutor, não ostenta os dons naturais de Galvão Bueno (embora mostre-se talentoso e competente na função), consegue dar um banho em seu colega quando resolve dizer o que pensa diante das câmeras. Mesmo narradores-debatedores talentosos como Milton Leite e João Palomino não demonstram, pelo menos sob minha ótica, o peso de relevância opinativa que Cleber exibe em seus momentos mais inspirados.

Questão de opinião, claro, mas que Cleber me surpreendeu, surpreendeu.





Monday, April 09, 2007

Nossos Kafkas contemporâneos e seus terríveis inimigos



Ao longo dos três últimos dias, minha mente cogitou diferentes possibilidades para o próximo post desse blog, e por fim chegou a uma conclusão.
Até anteontem, eu pretendia falar sobre uma história pitoresca envolvendo Stanley Kubrick e o ator Malcolm Mcdowell nos bastidores do filme laranja Mecânica. De ontem para hoje, cogitei refletir sobre algo ocorrido durante o último Domingão do Faustão envolvendo a grande celebridade do momento, vulgo Alemão. Por fim, mudei de idéia, e decidi expressar um certo descontentamento com algo que vejo todos os dias, algo que me parece óbvio, mas que tantos insistem em passar por cima como se jamais acontecesse.

Vejo o tempo todo gente comum condenando gente comum por injustiças cometidas contra gente por eles mesmos consideradas incomum. Nossos colegas, pais de família e professores de faculdade de hoje condenam a igreja católica que um dia quis cremar Galileu por este crer que a terra era redonda; depreciam Hitler e todos os "idiotas" que ousaram seguir preceitos "absurdos" sobre raças superiores e um Reich de mil anos; cospem no nome de Judas e daqueles sacerdotes judeus e autoridades romanas que condenaram Jesus à crucificação. Torcem o nariz para os pais caretas de Cazuza, os "monstros" da ditadura militar, a burguesia preconceituosa que encarceirou Oscar Wilde, os intelectuais medíocres que não compreendiam a genialidade transcedental de Nietzche, os "entendidos" de arte que não valorizaram Van Gogh quando ele era vivo, os que mantiveram Kafka enclausurado nas rede absurdas dos senso comum de seu tempo e os que "pisavam no rosto da vontade humana" durante o sombrio 1984, de George Orwell.




Os agentes normalóides do senso comum atual adoram depreciar seus antecessores e pensar que agiriam contrariamente a eles se ocupassem seus lugares enquanto viviam. Estes inimigos potenciais de Nietzches, Kafkas e Dostoievskys abarrotam as próprias estantes com os trabalhos destes gênios, almejam apropriar-se de suas idéias, suas personas, seu legado e unicidade, pensam-se extensões presentes de sua transcendentalidade enquanto exercem justamente um papel contrário durante seu tempo, encarnando os mesmos poderes reacionários contra o qual estes ícones se opunham para castrar e descreditar seus sucessores atuais, impedindo-os de emergir à relevância pública. Os agentes do senso comum só sabem defender ideiais estabelecidos, usar Nietzche, Faucault ou Jesus da mesma forma que os católicos do tempo de Galileu usavam Aristóteles contra ele. Muitos destes hipocritas se aliariam ideologicamente à Hitler sem pestanejar com o mesmo afinco e certeza com que hoje o condenam de boca cheia; crucificariam Jesus e libertariam barrabás como fizeram seus "inimigos ideológicos" do passado, estivessem ao lado deles na história.



Para cada representante da vontade de transcender que atinge notoriedade ou grande relevancia pública (e eles não precisam ser gênios como Nietzche, Lennon ou Mozart, aliás, a maioria não é, embora represente genuinamente as reais forças da revitalização da liberdade e criatividade humanas), há dezenas ou centenas de semelhantes que jamais conseguirão abandonar seus cárceres psico-sociais para exercer aquele poder transformador que possuem. Entender a obra de um gênio é menos importante do que colaborar ou praticar aquele mesmo papel de abrir portas que a ele se atribue. E a maioria esmagadora das pessoas que conheço sabe apenas fechá-las, até porque aprendeu a viver desse modo. Fechá-las para si e para outros, impedindo que terceiros consigam abrí-las.
Portanto, é bem provável que você tenha candidatos a gênios ou abridores de portas a sua volta, é bem possível que você, inconscientemente, os esteja ajudando a castrar, ou talvez você mesmo esteja sendo castrado enquanto lê este texto.

Ler, defender e idolatrar abridores de portas do passado é mais fácil do que colaborar com os abridores de portas do presente, e seu bisneto careta de amanhã poderá estar depreciando sua caretice enrustida atual só para poder legitimar a dele. É o que a maioria das pessoas sempre fez.

Nota do autor: Este artigo foi republicado em 28/08/07 no site http://www.dominiocultural.com/

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Tuesday, April 03, 2007

Sobre a arte de nossos tempos

ATO I


por André Dahmer




fonte: malvados.com.br



ATO II


por Jean Baudrillard


A partir do século XIX, a arte se quer inútil. Ela faz disso um título de glória (o que não é de forma alguma o caso na arte clássica na qual, em um mundo que não é ainda nem real, nem objetivo, a questão da utilidade ou da inutilidade nem mesmo se coloca). É portanto lógico que exista uma predileção pelo dejeto, que por definição também é inútil. Basta levar qualquer objeto à inutilidade para fazer dele uma obra. É precisamente isso o que faz o ready-made, quando se contenta em desinvestir um objeto de sua função, sem nele nada mudar, para dele fazer um objeto de museu. Basta fazer do próprio real uma função inútil para dele fazer um objeto de arte, como uma presa da devoradora estética da banalidade. O mesmo ocorre com as coisas antigas, revolutas e portanto inúteis – elas adquirem automaticamente uma aura estética. Seu distanciamento no passado equivale ao gesto de Duchamp, e elas também se tornam ready-mades, vestígios nostálgicos empalhados tais quais.
Portanto, através do dejeto, da figuração abstrata do dejeto, da obsessão do dejeto, a arte se empenha em encenar e em materializar sua inutilidade. Ela manifesta seu não-valor de uso, seu não-valor de troca (ao mesmo tempo em que se vende muito caro). Mas a inutilidade não tem valor em si, é um sintoma secundário e, sacrificando suas apostas a essa qualidade negativa, a arte se engana em uma gratuidade inútil. É um pouco o mesmo cenário da inutilidade, de pretender ao não-senso, à insignificância, à banalidade, à minimalidade, ou até mesmo ao desaparecimento e à ausência – o que testemunha uma pretensão estética redobrada. A anti-arte, sob todas as suas formas, se esforça para escapar da figura, da representação, da dimensão estética. Mas esta é irremediável, a partir do momento em que, com o ready-made, anexou a própria banalidade, e que tudo, mesmo nossa vida cotidiana, tornou-se arte (é bem por isso que não há, propriamente falando, nem arte, nem vida cotidiana). Fim da inocência do não-senso, da não-verossimilhança, da não-perspectiva, da não-transcendência. Tudo isso, que desejaria ser ou voltar a ser a arte contemporânea, só faz reforçar o caráter abominavelmente estético dessa anti-arte. Voltar ao elemento puro do objeto, à condição radical de só ser "uma coisa dentre outras", voltar a ser uma coisa absolutamente qualquer, mas guardando seu privilégio e sua singularidade: eis o que está além das forças da arte como tal. Há acidentes irônicos que a isso nos conduzem (o visitante sacrílego que urina no mictório de Duchamp, os lixeiros de Beaubourg, a Cadeira de Kossuth). Mas mesmo isso não põe fim à série estética do não-senso.


Texto extraído da "Perspicácia da motivação das banalidades "bienálicas" dos empresários e artistas contemporâneos" pertencente ao artigo "A fotografia como mídia do desaparecimento", postado neste link do orkut.

Sunday, April 01, 2007

Sobre o gol 1000 de Romário

São exatamente 17:28h de domingo, primeiro de abril, enquanto escrevo. Daqui a alguns minutos, Vasco e Botafogo se enfrentarão pela taça Rio e Romário terá a oportunidade de marcar seu milésimo gol como jogador desde os tempos em que pertencia às categorias de base. Para muitos, a data justifica a controvérsia acerca do marco, visto que, diferentemente de Pelé, a lista do baixinho conta com gols anteriores à sua profissionalização no esporte.
Discussões a parte, até porque, bem ou mal, Romário também está a três gols de bater pelé em "tentos" oficiais (leia-se, aqueles marcados em jogos profissionais por competições validadas pela FIFA). A questão que coloco aqui é outra; uma pergunta constantemente feita entre comentaristas e esportistas, geralmente dirigidas à goleiros. Seria uma honra ou uma vergonha tomar este milésimo gol? "Você" (no caso, um goleiro, ou mesmo um cidadão comum colocando-se hipoteticamente como um arqueiro) gostaria de tomar este milésimo gol? Sentiria-se honrado?
Tenho ouvido sims e nãos - mais nãos do que sims por parte dos goleiros - mas até agora não vi ninguém responder da forma (elementar até, entre outras igualmente elementares) com a qual eu responderia se colocado na situação por que passará o pobre (ou feliz) Julio Cesar. Seria uma honra tomar este milésimo gol? Seria algo bom, já que meu nome ficaria eternamente lembrado e associado a esta marca e ao momento em que ela foi concebida?

Como ex goleiro de pelada (ha, ha, ha) eu diria que seria uma honra tomar este gol se ele não surgisse de uma falha minha. Tomar um frango no milésimo gol de Romário talvez significasse (especialmente no caso de um goleiro que não conseguisse grande fama pelos próprios méritos) ficar marcado por um erro, SER este erro, profissionalmente falando. Para Julio Cesar (goleiro ainda novo e ainda anônimo), seria deveras importante tomar esse milésimo gol, mas sendo ele indefensável (ou quase), de preferencia bonito (com direito a uma bela ponte do jovem arqueiro), sem humilhações, sem frangos, sem micos. Nesse caso, sim, eu consideraria uma honra esta marca. Do contrario, melhor deixá-la para outro.