Tuesday, April 03, 2007

Sobre a arte de nossos tempos

ATO I


por André Dahmer




fonte: malvados.com.br



ATO II


por Jean Baudrillard


A partir do século XIX, a arte se quer inútil. Ela faz disso um título de glória (o que não é de forma alguma o caso na arte clássica na qual, em um mundo que não é ainda nem real, nem objetivo, a questão da utilidade ou da inutilidade nem mesmo se coloca). É portanto lógico que exista uma predileção pelo dejeto, que por definição também é inútil. Basta levar qualquer objeto à inutilidade para fazer dele uma obra. É precisamente isso o que faz o ready-made, quando se contenta em desinvestir um objeto de sua função, sem nele nada mudar, para dele fazer um objeto de museu. Basta fazer do próprio real uma função inútil para dele fazer um objeto de arte, como uma presa da devoradora estética da banalidade. O mesmo ocorre com as coisas antigas, revolutas e portanto inúteis – elas adquirem automaticamente uma aura estética. Seu distanciamento no passado equivale ao gesto de Duchamp, e elas também se tornam ready-mades, vestígios nostálgicos empalhados tais quais.
Portanto, através do dejeto, da figuração abstrata do dejeto, da obsessão do dejeto, a arte se empenha em encenar e em materializar sua inutilidade. Ela manifesta seu não-valor de uso, seu não-valor de troca (ao mesmo tempo em que se vende muito caro). Mas a inutilidade não tem valor em si, é um sintoma secundário e, sacrificando suas apostas a essa qualidade negativa, a arte se engana em uma gratuidade inútil. É um pouco o mesmo cenário da inutilidade, de pretender ao não-senso, à insignificância, à banalidade, à minimalidade, ou até mesmo ao desaparecimento e à ausência – o que testemunha uma pretensão estética redobrada. A anti-arte, sob todas as suas formas, se esforça para escapar da figura, da representação, da dimensão estética. Mas esta é irremediável, a partir do momento em que, com o ready-made, anexou a própria banalidade, e que tudo, mesmo nossa vida cotidiana, tornou-se arte (é bem por isso que não há, propriamente falando, nem arte, nem vida cotidiana). Fim da inocência do não-senso, da não-verossimilhança, da não-perspectiva, da não-transcendência. Tudo isso, que desejaria ser ou voltar a ser a arte contemporânea, só faz reforçar o caráter abominavelmente estético dessa anti-arte. Voltar ao elemento puro do objeto, à condição radical de só ser "uma coisa dentre outras", voltar a ser uma coisa absolutamente qualquer, mas guardando seu privilégio e sua singularidade: eis o que está além das forças da arte como tal. Há acidentes irônicos que a isso nos conduzem (o visitante sacrílego que urina no mictório de Duchamp, os lixeiros de Beaubourg, a Cadeira de Kossuth). Mas mesmo isso não põe fim à série estética do não-senso.


Texto extraído da "Perspicácia da motivação das banalidades "bienálicas" dos empresários e artistas contemporâneos" pertencente ao artigo "A fotografia como mídia do desaparecimento", postado neste link do orkut.

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