Monday, April 09, 2007

Nossos Kafkas contemporâneos e seus terríveis inimigos



Ao longo dos três últimos dias, minha mente cogitou diferentes possibilidades para o próximo post desse blog, e por fim chegou a uma conclusão.
Até anteontem, eu pretendia falar sobre uma história pitoresca envolvendo Stanley Kubrick e o ator Malcolm Mcdowell nos bastidores do filme laranja Mecânica. De ontem para hoje, cogitei refletir sobre algo ocorrido durante o último Domingão do Faustão envolvendo a grande celebridade do momento, vulgo Alemão. Por fim, mudei de idéia, e decidi expressar um certo descontentamento com algo que vejo todos os dias, algo que me parece óbvio, mas que tantos insistem em passar por cima como se jamais acontecesse.

Vejo o tempo todo gente comum condenando gente comum por injustiças cometidas contra gente por eles mesmos consideradas incomum. Nossos colegas, pais de família e professores de faculdade de hoje condenam a igreja católica que um dia quis cremar Galileu por este crer que a terra era redonda; depreciam Hitler e todos os "idiotas" que ousaram seguir preceitos "absurdos" sobre raças superiores e um Reich de mil anos; cospem no nome de Judas e daqueles sacerdotes judeus e autoridades romanas que condenaram Jesus à crucificação. Torcem o nariz para os pais caretas de Cazuza, os "monstros" da ditadura militar, a burguesia preconceituosa que encarceirou Oscar Wilde, os intelectuais medíocres que não compreendiam a genialidade transcedental de Nietzche, os "entendidos" de arte que não valorizaram Van Gogh quando ele era vivo, os que mantiveram Kafka enclausurado nas rede absurdas dos senso comum de seu tempo e os que "pisavam no rosto da vontade humana" durante o sombrio 1984, de George Orwell.




Os agentes normalóides do senso comum atual adoram depreciar seus antecessores e pensar que agiriam contrariamente a eles se ocupassem seus lugares enquanto viviam. Estes inimigos potenciais de Nietzches, Kafkas e Dostoievskys abarrotam as próprias estantes com os trabalhos destes gênios, almejam apropriar-se de suas idéias, suas personas, seu legado e unicidade, pensam-se extensões presentes de sua transcendentalidade enquanto exercem justamente um papel contrário durante seu tempo, encarnando os mesmos poderes reacionários contra o qual estes ícones se opunham para castrar e descreditar seus sucessores atuais, impedindo-os de emergir à relevância pública. Os agentes do senso comum só sabem defender ideiais estabelecidos, usar Nietzche, Faucault ou Jesus da mesma forma que os católicos do tempo de Galileu usavam Aristóteles contra ele. Muitos destes hipocritas se aliariam ideologicamente à Hitler sem pestanejar com o mesmo afinco e certeza com que hoje o condenam de boca cheia; crucificariam Jesus e libertariam barrabás como fizeram seus "inimigos ideológicos" do passado, estivessem ao lado deles na história.



Para cada representante da vontade de transcender que atinge notoriedade ou grande relevancia pública (e eles não precisam ser gênios como Nietzche, Lennon ou Mozart, aliás, a maioria não é, embora represente genuinamente as reais forças da revitalização da liberdade e criatividade humanas), há dezenas ou centenas de semelhantes que jamais conseguirão abandonar seus cárceres psico-sociais para exercer aquele poder transformador que possuem. Entender a obra de um gênio é menos importante do que colaborar ou praticar aquele mesmo papel de abrir portas que a ele se atribue. E a maioria esmagadora das pessoas que conheço sabe apenas fechá-las, até porque aprendeu a viver desse modo. Fechá-las para si e para outros, impedindo que terceiros consigam abrí-las.
Portanto, é bem provável que você tenha candidatos a gênios ou abridores de portas a sua volta, é bem possível que você, inconscientemente, os esteja ajudando a castrar, ou talvez você mesmo esteja sendo castrado enquanto lê este texto.

Ler, defender e idolatrar abridores de portas do passado é mais fácil do que colaborar com os abridores de portas do presente, e seu bisneto careta de amanhã poderá estar depreciando sua caretice enrustida atual só para poder legitimar a dele. É o que a maioria das pessoas sempre fez.

Nota do autor: Este artigo foi republicado em 28/08/07 no site http://www.dominiocultural.com/

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1 comment:

Anonymous said...

Isso me lembra uma expressão do Caetano Veloso: "matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem". O tema que você desse post é extremamente interessante... de fato, algumas pessoas julgam que, se vivas na época de Nietzsche, não seriam parte do senso comum que não o compreendeu. Se vivas na época da ditadura, teriam lutado contra ela. Mas isso é apenas porque a história já nos mostrou que Nietzsche foi um grande gênio e que a ditadura foi algo negativo em nossa história. Isso a gente nota no papel que elas exercem no mundo de hoje... se o papel do senso comum ou se o papel contrário ao do senso comum. Se hoje elas estão em concordância com as normas do senso comum, então é porque elas, se vivas há 200 anos atrás, também seriam senso comum. E se vivas no ano de 2080 a mesma coisa. Mas uma coisa é, por exemplo, ver a ditadura hoje, outra é compreender a ditadura inserido em sua época, com todas as suas manipulações, com a censura, com a informação que não chegava... e essa compreensão quem teve, na época, só mesmo aquele pessoal que partiu pro pau contra os militares. Ou seja, uma minoria, porque se fosse uma maioria a ditadura teria sido derrubada de uma outra maneira. Eu vejo muito esse lance também quando penso na história do filósofo Sócrates. Fico besta de ver como algumas pessoas representam hoje o mesmíssimo papel de Ânito, Meleto e Lícon, ou de qualquer outro grego que tenha sido favorável à condenação de Sócrates.