Monday, February 11, 2008

Rio dos dissimulados

Sei que nunca é justo monolitizar o comportamento de um conjunto humano, pois atenta-se contra as naturais e incontáveis possibilidades de variação dentro do grupo escolhido. Se falamos de países ou cidades, tais riscos só aumentam. Sinto-me, contudo, impelido a generalizações no momento. Não tanto para com os pobres indivíduos, vítimas de imposições invisíveis perpetuadas pelo meio que habitam, pela cultura de grupos, lugares, influências.



Dia desses vi a briga do médico mineiro com dois cariocas no Big Brother Brasil pelo youtube. A carioca reclamava algo sobre terem votado nela, etc e tal, e o mineiro resolve botar para fora a antipatia que sente pela moça, o quanto achava ela falsa, na cara dura mesmo, e a "pobrezinha" se chocou. "Sujeira sim, mas só debaixo do tapete, porque falar na cara é crime!". Fez-se ela vítima do monstro da sinceridade e convocou outro carioca a comprar sua briga. O médico não teve medo e soltou-lhe o verbo também, para estarrecimento do novo adversário.

Não sei quem estava certo ou porquê. Não acompanho o programa, embora sempre acabe sabendo do que rola via internet ou "gente a minha volta". Pensei na cena por me fazer lembrar de outra, ocorrida em Minas Gerais, quando do nada um rapaz vem para o outro, sem necessariamente estar brigando, em meio a um churrasco amigável, dizendo que não vai com a cara dele, que acha ele isso e aquilo, que até o respeita por esse ou aquele motivo, mas deseja deixar claro que não o considera um "dos seus". Tal cena, claro, poderia ter ocorrido em qualquer lugar e não necessariamente prova que os mineiros não sabem agir dissimuladamente ou que cariocas não possam dizer certas coisas na cara de modo corriqueiro, sem precisar estar "lavando roupa suja" para isso, mas vez ou outra sou levado a crer que certas atitudes e "jeitos de ser" não fazem parte do conjunto de virtudes individuais redigidas no manual invisível de "como viver bem no Rio de Janeiro", e quebrá-las pode trazer conseqüências danosas, transformar uma vítima circunstancial em "bandido" aos olhos públicos, ou seja, mais vítima do que antes, sendo esta, claro, a real intenção do acusador: Voltar o problema da vítima contra ela, mantendo suas mãos limpas e intocadas.



Divago sobre isso em função de algo ocorrido dias atrás. Alguém me liga de uma agência e diz que seu cliente gostou de duas fotos minhas lá tiradas pelo "irrisório" preço de dez reais, já que eu não tinha fotografias próprias, um "book" ou "composite". Segundo este telefonema, o cliente precisava de mais fotos até o dia seguinte para me colocar na seleção de um comercial contra apenas um concorrente. Insisti que não possuía um "book" ou coisa parecida, mas que talvez pudesse providenciar algo em 2 ou 3 dias, mas o homem do telefone manteve sua posição. O prazo seria só até o dia seguinte, e eu precisaria de 30 fotografias tiradas em estúdio e um videobook. Algo que ELES poderiam providenciar a um custo específico, caso eu não conseguisse por fora. Claro. Era uma armadilha. Eu tiraria as fotos, gastaria o dinheiro e "perderia" o concurso. Agências assim têm nesses servicinhos de foto e vídeo sua principal fonte de renda. Minha vontade era expor o esquema e deixar claro ao sujeito que eu NÃO FARIA AS FOTOGRAFIAS COM ELE. Pensei bem e vi que seria burrice. Não. Simplesmente disse que não tinha condições no momento. Ele insiste num abatimento. Continuo alegando que não posso, e a barganha de mentirinha se mantém, ainda que os barganhadores saibam do que realmente está em jogo. Despeço-me educadamente do homem, promentendo ver se conseguia as fotos em tempo e deixo a estória para lá. Agisse eu de outro modo, ele se declararia ofendidíssimo ("Você está desconfiando de mim?") e certamente vetaria qualquer chance futura que eu pudesse ter de conseguir algo de verdade pela agência, caso realmente se tratasse de uma.

A moral dessa história serve para duzentos e oitenta situações corriqueiras onde os princípios da formalidade são vistos como um mal, uma atitude deselegante, e em situações onde deveriam prevalecer sobre qualquer espírito mentiroso de camaradagem. No Rio de Janeiro (e em diversos lugares) muita gente parte da idéia de que qualquer desconhecido deveria confiar plenamente em suas índoles antes de mais nada. "Você não confia em mim?", pergunta-me a secretária "sete-um" de uma agência onde trabalhei enquanto me passa a perna por baixo dos panos. "Você não confia em mim?" é a pergunta número 1 dos suspeitos. Quem não deve não teme a precaução do outro.



No Rio da informalidade e da malandragem, dissimulação torna-se instrumento de sobrevivência, até para quem não a aprecia. Se você desconfia de Joãozinho enquanto este lhe oferece uma oportunidade imperdível, invente uma boa desculpa. Se ele insistir, invente uma melhor, e siga assim até que ele desista, mesmo que, no fundo, ambos saibam das verdades em jogo. O primeiro que deixar cair a máscara é o bobo, o que não aceita brincadeira, o que pensa maldade, que tem preconceito, que não é "amigo". Vale para brincadeiras que escondem ofensas. Vale para o cara que deseja roubar sua namorada e está pronto a lhe fazer passar por idiota ciumento caso você o acuse do intento. O bom carioca deve ter sempre condições de usar as próprias palavras e atitudes perniciosas em defesa de suas "puras intenções", deixando qualquer acusador em maus lençóis. É assim que funciona. Quem não sabe jogar é o bobo, esteja ou não certo, pois razão aqui é só um detalhe. Um incômodo detalhe.


1 comment:

Anonymous said...

Ótimo texto, realmente muito bom! O sujeito em sociedade é valorizado não pela inteligência, clareza, coerência e transparência das suas idéias, e sim pela sua capacidade de ser "o que lhe for mais vantajoso no momento". Isso só é possível através de um discurso escorregadio, que revela e oculta (sentimentos, traços de personalidade etc) o que lhe é conveniente naquele momento. E o Big Brother Brasil é um bom exemplo; todos os participantes de programas do tipo juram portar uma autenticidade que é, obviamente, calculada no intuito de PARECER autenticidade (e não de SER autenticidade). De modo que o "estouro" (a "raiva", a "atitude impulsiva") seja talvez a única coisa na qual possamos confiar como verdadeira - o que chamo de "a sinceridade que não foi possível evitar". Os participantes do BBB estão lá para serem julgados por um público. Esse público tem um código de ética que pressupõe a autenticidade-como-aparência, e não a autenticidade-autenticidade. Então tudo o que um "brother" mais quer no mundo é se adequar à esse código de ética do público, mesmo que afirme o contrário. E ele sempre afirma o contrário, pois para ser fiel ao princípio da autenticidade-como-aparência, ele PRECISA afirmar o contrário. Eu acho que o Big Brother de certa maneira reflete o que é a nossa realidade (ou irrealidade), mas de uma maneira caricata, radicalizada. Todo bizarro é o reflexo do que está escondido nas entre-linhas (pense o terrorismo, por exemplo). O terrorismo e o capitalismo são exatamente a mesma coisa (e hoje em dia é possível dizer que um é o braço direito do outro); só que o primeiro escancara a violência e o segundo tenta ocultá-la por meio de uma "ética da civilização ocidental". E o BBB é nada mais nada menos do que o espírito da competição - presente em nosso dia a dia - elevado à enésima potência. Para sobreviver e manterem-se "vivos no jogo da vida real", os participantes do BBB precisam desconfiar uns dos outros e, ao mesmo tempo, costurar alianças entre si (de preferência com participantes populares, ondem possam sugar "a simpatia do espectador"). Essa, nas palavras do cineasta Jean Reinor, "a regra do jogo". E o que melhor se adequar, o que "melhor sobreviver na selva de pedra", o que melhor agradar a sociedade, ganha um milhão. Essa história de que vence "o mais ético" e "o mais sincero" é conversa fiada. A nossa vida "lá fora" é exatamente desse jeito, só que nós precisamos ocultar esse estado hobbesbiano onde o "homem é o lobo do homem"; ocultar justamente para preservar esse estado de coisas e fingir que ele não existe, esconder que o que caracteriza de fato esse tipo de sociedade que nós estamos construindo é o CONFLITO, maquiado por uma "ética da formalidade". É o grande irmão, é o big brother, é essa realidade que não é realidade, é essa autenticidade que não é autenticidade, é a simulação. A única coisa que o Big Brother Brasil tem de real é o fato dele imitar a irrealidade da vida cotidiana - nisso ele é extremamente realista; ou melhor, nisso ele é mais do que realista, ele é hiper-realista, porque é mais do que a (ir)realidade, é a (ir)realidade observada de um microscópio. Estamos realmente em uma era de crise da razão, que infelizmente é hoje - como fora dito no texto - um incômodo detalhe. Um detalhe à ser oprimido, inclusive. Mas oprimido não com polícia-política como na época em que os militares brasileiros ainda temiam um triunfo socialista, e sim com todo o "carinho, amor e liberdade" que o liberalismo econômico tem a nos oferecer. Ao ponto das pessoas sentirem-se realmente muito incomodadas quando alguém tenta denunciar tudo isso e agir racionalmente. Não é raro que justamente as pessoas mais racionais sejam acusadas de serem as mais irracionais e, num certo sentido, até meio terroristas. Eu posso lhe dizer que 90% das brigas e discussões feias que tive ao longo desses últimos 10 anos são fruto deste mesmo problema, que se transporta para ínfimos acontecimentos da vida cotidiana. Porque eu sempre tive dificuldade em suportar essa civilidade-violenta, essa selva pós-moderna, a gentileza ofensiva, a violência de entre-linhas, a violência simbólica, a violência travestida. Lembro-me de uma conhecida extremamente conservadora, que adorava me dizer coisas como: "você precisa se adequar, arrumar um emprego, parar com essa história de ser contra o sistema". Obviamente eu reagia à isso com certa veemência; era quando ela, numa postura de vítima-incompreendida - me dizia: "mas eu só quero te proteger". Certa vez, cansado dessa história de "eu só quero te proteger", dei-lhe a seguinte resposta: "A única coisa da qual eu preciso me proteger é de pessoas como você". Ela se ofendeu, claro, e naturalmente fez todo aquele teatro dramático de "mulherzinha chocada". Esse exemplo sintetiza muito bem a relação que grande parte das pessoas estabelecem (ou tentam estabelecer) comigo - essa relação de falsa proteção, de castração. E o que eu vejo hoje é que o grande problema das pessoas não é a violência, e sim a manifestação da violência enquanto algo que existe para além do visível, para além desses programas populistas sobre insegurança pública, para além de um "notícias populares". Nós queremos falar a respeito das invasões dos sem-terras, mas não queremos falar a respeito da existência do latifúndio. A culpa está somente com aquele que reage; assim pensa a sociedade. E isso me lembra uma frase que li à respeito da obra de Franz Kafka: "o espantoso - em Kafka - é que o espantoso não espanta ninguém". A metáfora da "piada maldosa" é perfeita. A piada maldosa é uma forma de violentar o outro com o pretexto de que tudo não passa de uma "brincadeira inocente"; é pura armadilha. Se o violentado não "engolir" a "brincadeira inocente" e se rebelar contra aquele que lhe violenta - denunciando "a verdade por trás da piada" - o "piadista" (cômico e trágico) terá então a chance de argumentar que o agredido é o agressor, que o violentado é o violento, que o incompreendido não compreende. Se o agressor assume claramente a sua intenção de agredir, fica muito mais fácil ao agredido justificar moralmente uma reação. Por isso a "piada maldosa" é uma das formas mais covardes de agredir, porque pretende deixar o agressor sem instrumentos de reação. E assim nós colocamos o mundo de cabeça para baixo. Isso é mais ou menos o que se deu na relação conflituosa entre governo e esquerda nos anos de chumbo da ditadura militar, quando boa parte da sociedade civil tratava a oposição que queria libertar o Brasil como "bandida". Essa hipocrisia perpetou-se aos dias atuais - mas ela se reciclou, se renovou, e agora busca uma dissimulação-clean-soft, da "autenticidade", da "liberdade", do "humor", da "leveza" que aposta menos no poder da opressão física e sim no poder da opressão intelectual.

Mais uma vez, meus parabéns pelo texto!

Qualquer coisa estou no orkut http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=14950999810498314751

Grande abraço,
Rafael Issa