Thursday, August 21, 2008

Ecos de Pequim - Parte 2

Por que elas não conseguem vencer?



Aconteceu de novo.

O melhor time do mundo, da melhor jogadora do mundo, do melhor futebol do mundo, morrendo na praia para onze "branquelas" (ou quase isso). Aliás, perdoem-me o termo. Longe de mim qualquer alegação racista contra nossas oponentes, que, de algum modo, mereceram seu ouro ou título cada vez que o conquistaram.

Por que, perguntamos, nossas moças não conseguem vencer? Por que uma geração tão prodigiosa, tão constante na presença em finais e superior às adversárias em iniciativa erra trocentas chances e é surpreendida numa jogada corriqueira, um contra-ataque ou uma bola que sobrou? Haverá explicação plausível ou seria só um capricho do destino?



Na TV, ouvimos o locutor lamentando uma repetida injustiça contra nossas "guerreiras", nosso talento superior e merecimento. "A bola insiste em não entrar", ele grita. "Essa prata vale ouro", ele diz. Acho justo que se reconheça o mérito do esforço, da garra, da perseverança e superação: alicerces do princípio esportivo, recompensáveis no triunfo e na derrota desde tempos imemoriais, quando a primeira competição foi inventada. Igualmente justo reconhecermos o talento mais elevado, a melhor jogada, jogador, atuação, e nisso o Brasil sobrou neste futebol olímpico feminino, como também em Atenas há quatro anos e no último mundial. Jogou, brigou, galgou bem cada passo na trajetória rumo ao título até perecer na grande final, desmerecidamente, ao menos em duas ocasiões.

Então é isso? Trapaça do destino? Mérito irreconhecido pelos Deuses dos esportes?

Não creio.



Nosso merecimento é louvável, mas num jogo como o futebol, questões como superioridade técnica e garra podem ser essenciais, mas insuficientes na construção de um campeão. A categoria masculina amargou 24 anos de jejum proclamando-se campeã moral a cada copa perdida, a cada semi ou quarta de final onde nosso "melhor futebol" desvanecia ante um oponente teoricamente mais fraco que sabia aproveitar uma chance e segurar-se na defesa. Levamos 24 anos para entender ou reaprender que um campeão também é forjado em detalhes; que erros ou acertos de segundos podem ser mais relevantes numa decisão do que uma partida inteira bem realizada. A "geração Dunga" tinha talento em Romário e Bebeto, mas não era melhor que a de 82, por exemplo, que perdeu duas copas seguidas. Os tetra-campeões venceriam pela garra, pelo talento, sorte, mas também porque foram bem preparados para detalhes que diferenciam grandes equipes de campeões do mundo, nem sempre tão excepcionais. Defenderam-se bem, erraram pouco, não deram contra-ataques, prezaram em não perder gols, ainda que os desperdiçassem em alguns jogos; treinaram situações adversas e souberam aliar talento individual à interação coletiva, com e sem a bola nos pés, coisa que, a meu ver, sempre faltou a essa seleção feminina, ainda que conseguisse compensar isso na qualidade ímpar de algumas atletas e por isso chegar longe.



Nosso brasil de saias ainda é um time individualista, e no futebol, o jogo não se faz apenas onde a bola está, mas onde ela não está. Quantas vezes vimos Marta ou Cristiane ou Daniela tentando resolver um lance sozinha enquanto as companheiras, carentes de noções básicas de colocação sem bola, mal se movimentavam, ou o faziam para o lado errado? Alguém se lembra de Ronaldo e Rivaldo na final de 2002? De Romário e Bebeto? Do "toca daqui que eu deixo de lá"? De 2, 3, 4 ou 5 jogadores, um entendendo o outro, um facilitando o trabalho do outro, um deslocando a marcação para o outro em séries de dribles, fintas e triangulações de caráter coletivo, como se juntos formassem um organismo fluido chamado "ataque"? Alguém recorda o gol do Carlos Alberto na final de 70, uma das maiores obras do gênio coletivo na história das copas? Nosso futebol não foi o melhor do mundo tantas vezes só pelo talento de indivíduos, mas também na capacidade desses gênios em unir seus dons, tornando-os complementares, coisa que não fizemos em 2006 e que sempre faltou a essa seleção feminina, ainda que ela seja, a meu ver, a melhor do planeta há anos. Não conseguiu transpor a fase ingênua do futebol, pura, "peladeira" e passível de erros bobos. É mais ou menos como uma Nigéria ou Camarões nos anos noventa, mas com adversárias talvez menos infalíveis e por isso chegaram tão longe e até poderiam vencer, apesar dos defeitos.



Lembremos também que as americanas tiveram oportunidades claras de gol e uma bola na trave. Feitos pouco mencionados por Galvão Bueno em sua avaliação do jogo. Souberam usar a inteligência, a tradição e a experiência para dificultar a troca de passes do Brasil em sua defesa, tornado nossas jogadoras dependentes de sobras em "bate-rebate" e de lances individuais, cansando-as, já que "se moviam mais que a bola" para atacar. Nossa escassez de bons passes longos e curtos ou cruzamentos também colaborou para a derrota.

Não digo que isso explique sumariamente porque um time ganha e outro perde, já que o futebol também é feito de imprevistos, injustiças e lances inusitados de caráter decisivo. É importante, todavia, que se procure entender e raciocinar sobre os possíveis fatores que repetidamente impedem uma geração talentosa de fazer valer sua superioridade na obtenção de títulos. Lamentar a falta de sorte ou exaltar o espírito olímpico e a habilidade de nossas atletas pouco agraciadas pela balança da fortuna é menos importante do que desconstruir vícios entranhados em nossa mentalidade e modo de jogar. Devemos lapidar estes talentos sob o ponto de vista coletivo, aprimorar fundamentos e jogadas básicas, às vezes não tão belas, mas essenciais em se compor um leque de opções para jogos decisivos quando o "prato principal" não funcionar. Lembremos que gols de cabeça, de barriga e gols contra valem tanto quanto os de bicicleta.


4 comments:

Anonymous said...

Comentário de um não-especialista: bom... é realmente verdade que o futebol brasileiro tem uma tradição "menos coletiva", justamente por conta dos seus talentos individuais. Algumas copas perdidas (1982, 2006... 1978... se bem que 1978 passaram a mão vai ahaha) mostram que nem sempre os talentos individuais são suficientes pra dar conta e que, realmente, como o post expõe, é preciso também uma maneira de jogar mais coletiva. Me parece, inclusive, que foi assim em 1994... o Brasil não tinha por exemplo jogadores habilidosos no meio de campo, era um meio de campo "de força". Na copa de 94 só vi futebol arte mesmo quando o Viola entrou na final, no segundo tempo da prorrogação contra a Itália. Enfim, em 1994 foi um time bem coletivo mais um jogador (Romário) que fazia a diferença.

Mas, mesmo com os argumentos aqui apresentados de forma correta, eu ainda acho que - no caso das meninas do futebol - elas mereciam o ouro. Primeiro porque sacolaram a Alemanha, que era um time bem forte. E segundo pelo próprio jogo final. Acho que elas são melhores que as americanas; o mesmo não digo da seleção masculina, que é realmente pior do que a argentina. Não acho que elas tenham feito um jogo "totalmente equivocado"... em boa parte do jogo não vi os EUA passar da linha do meio de campo. O que faltou foi sangue frio pra botar a bola pra dentro antes que o jogo fosse pra prorrogação e aí -com todo mundo meio desgastado - a coisa fosse decidida meio lotericamente.

Perder dos EUA?
Por isso que eu gosto de vôlei ahaha
(piadinha aha)

Luiz Mendes Junior said...
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Luiz Mendes Junior said...

Eu tb acho que mereciam o ouro, e deixei isso bem claro no post. O texto é justamente sobre alguns dos possíveis "porquês" ou alguns possíveis "fatores" que tornam, ao menos até certo ponto, explicavel porque um time que demonstra tanto potencial; que em três torneios importantes seguidos (uma copa do mundo e duas olimpíadas) demonstrou o mais vistoso futebol da competição, goleou potências na semi-final (EUA no mundial de 2007 e Alemanha em Pequim) e, no fim, não consegue ratificar o que todo mundo já sabia na partida derradeira. O texto não é meramente uma crítica às jogadoras, que dadas as condições e o pouco incentivo ao futebol feminino do Brasil, e ainda que hoje algumas delas joguem em solo europeu, conseguiram atingir, juntamente com uma comissão técnica lutadora, um patamar que nenhum país da america latina hoje ocupa, brigando com as melhores e mais tradicionais seleções do mundo e demonstrando uma constância de "chegada" até maior do que as de Alemanha e EUA, países que levam o futebol feminino a serio desde os anos 70 e hoje, em termos de resultado, as maiores potências do mundo. Se vc clicar na tag "futebol feminino" no final do post e checar a terceira postagem de cima para baixo que aparecerá na tela, verá um post intitulado "avante guerreiras da bola", onde escrevi justamente sobre isso, sobre esse milagre brasileiro, dadas as condições e a falta de incentivo para praticar o esporte aqui dentro.

No entanto, e é exatamente esse o ponto principal do meu post, é preciso entender que uma vez atingido determinado patamar, deve-se olhar adiante. Em 2004 jogamos talvez até melhor que nessa olimpíada, pelo menos achei o time um pouco mais coletivo. Os Estados Unidos fechavam um ciclo. A seleção hiper-campeã deles estava velha e as principais jogadoras, em sua ultima olimpíada. Li várias matérias em páginas americanas, e uma delas - redigida após o jogo final, onde o Brasil demonstrou total merecimento da vitória e os Estados Unidos, talvez até de um modo pior do que em Pequim, ganharam o jogo em lances isolados - dizia que o futuro do futebol feminino estava bem visível naquele jogo, que o Brasil estava dando o próximo passo para elevar o nível do esporte, e que, dali em diante, as referências no futebol feminino seriam outras, e quem não as seguisse ficaria para trás. De fato, é essa a impressão que tenho da seleção brasileira no futebol feminino há muito tempo. Que ali há um potencial que não se vê nem na Alemanha e nem nos Estados Unidos, mas, por algum motivo, esse potencial não consegue executar o passo seguinte, e o passo seguinte tem a ver com questões que passam pelo psicológico, por detalhes de preparação, experiência e amadurecimento que costumam ser imprescindíveis em partidas decisivas, onde as coisas ficam um pouco diferentes do usual. Em 94 foi assim (no masculino). Brasil e Itália foi um jogo atípico dos anteriores, o primeiro em que uma defesa conseguiu literalmente parar o nosso ataque e não deixar nosso time concluir muitas jogadas. Mas o Brasil estava preparado para isto, como estava no volei hoje. Era a melhor seleção incontestável da copa, mas num campeonato você tem que ser o melhor também no jogo, e também em pequenos momentos dentro do jogo, ou corre o risco de não conseguir fazer valer sua supremacia sobre o oponente. Foi assim que a Alemanha venceu duas copas, contra as mega-favorias Hungria de 54 e Holanda de 74 que até hoje são lembradas como dois dos 5 maiores times da história do futebol. Dois times que não conseguiram ser campeões e perderam para o "desbancador de favoritos" número 1 do planeta, a a nação que "descobriu uma maneira de ganhar copa do mundo sem precisar jogar futebol". A Alemanha é justamente o oposto disso aí. Pouquíssimas vezes teve um time explendoroso, 7 finais de copa do mundo (o mesmo do brasil), 3 títulos mundiais.

No futebol feminino, poderia-se dizer que também faltou sorte à nossas jogadoras nas três ocasiões em que perdeu na final. Tb acho que faltou, mas discordo dos que pensam que a coisa se explica mais por esse ângulo do que por qualquer outro. Os Estados Unidos fizeram um jogo inteligente e souberam tirar vantagem de defeitos que a seleção feminina do brasil sempre teve nessa olimpíada, que é uma certa carência de jogadas coletivas bem executadas. Lembra da bola em que a Cristiane, se não me engano, preferiu dar um passe para Daniela mal posicionada do que para Marta, bem colocada? Marta perdeu muitos gols no fim do jogo, mas estava sempre tentando resolver uma jogada sozinha pq não achava as companheiras, e isso facilitava a marcação, que podia botar duas ou três jogadoras só em cima dela e tirar todo o ângulo na hora do chute, por exemplo, ou dificultar o drible. Aquela bola em que Hope Solo fez uma defesa espetacular só aconteceu pq a Marta ganhou um bate rebate de uma jogada que estava perdida.
Tudo bem que os EUA tb cometeram alguns erros que podiam ter lhes tirado a vitória, não foram tão infalíveis assim e, nos ultimos minutos se encolheram de maneira tal que o Brasil teve muitas chances, apesar de tudo. Mas os EUA tb perderam chances capitais de gol.

Defeitos nem sempre "explicam" uma derrota ou a perda de um título (A França ganhou 98 sem ter um centro-avante minimamente decente), mas se vc morre na praia repetidamente, vale a pena investigar para ver se o problema é só sorte ou se tem algo mais, e se é possível, lidando com esse algo mais, minimizar o poder da "dona sorte" de nos sacanear, evitando que um potencial tão claro se ratifique em resultados. Nossa meninas lutaram, jogaram, mereceram, etc, mas não adianta ficarmos apenas batendo na tecla do "Essa prata vale ouro". Estaríamos nós sendo tão lenientes com o futebol masculino na mesma situação, perdendo três finais importantes quando "pela campanha no torneio", de repente, merecia ganhar? Duvido. Estariam todos procurando culpados. E os defeitos que apontei decerto não são só "causas", mas, na maior parte dos casos, sintomas de uma preparação ainda aquém da formação de campeãs (em muito gerada pela falta de incentivo e investimento no esporte aqui dentro), apesar de todo o heroísmo. Em horas como essa, é melhor ser como os americanos, que racionalizam a questão e tentam "entender" o que acontece em vez de lamentar a fatalidade.

Luiz Mendes Junior said...

Além disso, e não posso esquecer de dizer, há sim uma tradição individualista no futebol brasileiro que tb já nos tirou muito título no masculino, quase uma tendência natural da nossa maneira de jogar, e, no feminino, parece que ainda estamos num estágio de imaturidade, de "deixar levar pelo instinto", e, isso, a meu ver, é um dos grandes defeitos desse time, como foi do time masculino de 2006.