Monday, September 03, 2007

Resenha - Tropa de Elite - 2007



Não dá mais para segurar a avalanche. O filme Tropa de Elite, longa brasileiro dirigido pelo cineasta José Padilha com o apoio de ex integrantes da polícia, que tem como base um livro "quase" homônimo, escrito à três mãos, incluindo a do renomado antropólogo Luis Eduardo Soares, já se espalhou pelo Rio de Janeiro e território nacional antes mesmo de aparecer na telona. A produção deveria estrear em novembro, mas uma versão inacabada dela caiu em mãos erradas e virou cópia pirata, circulando aos milhares pelo mercado informal, depois internet, youtube, e, segundo uma certa fonte, quarteis da Polícia Militar. Atores até então desconhecidos, como o ex-bilheteiro André Ramiro, já são abordados na rua como celebridades.






Tropa de Elite pode ser nosso próximo "Cidade de Deus" em termos de repercussão nacional e internacional, pois ostenta bons ingredientes comerciais, é excepcional pelo ponto de vista técnico, possui um enredo impecável que esmiuça com ousadia, mas também um certo senso de justiça, o universo corrupto e desamparado da polícia militar carioca, onde um oficial precisa se virar ganhando "quinhentos contos por mês", correndo risco diário de vida, caso não fature "um por fora" ou não faça acordos com os donos do morro oferecendo tréguas esporádicas em troca do "arrego". O filme traça um perfil complexo e profundo do Rio de Janeiro, começando pelas relações internas dentro da polícia, que precisa achar um "jeitinho" de funcionar ante o descaso constante do governo e a sordidez de determinados elementos de alta patente dispostos a contaminar todo um sistema supostamente destinado à proteção do cidadão, transformando-o numa rede fraudulenta e corrupta onde o policial mais honesto e bem intencionado precisa passar por cima da lei para não sucumbir. Um desses policiais é André Matias, aspirante ao oficialato e estudante de direito. Através dele, o autor estabelece elos entre a guerra do tráfico e o mundo acadêmico da elite juvenil que discute sociologia carioca a partir de Foucault e não dispensa seu baseadinho enquanto o couro come lá fora; que recorre a ONGs para concretizar projetos de consciencia social, mas nem sempre se apercebe das reais questões inerentes ao submundo que ingenuamente almeja entender e influenciar, e que está inevitavelmente além (ou aquém) de suas realidades.



Tropa de elite não é um filme de mocinhos e bandidos; não busca apontar "certos" e "errados" na índole individual dos personagens mais do que ater-se às questões e poderes envolvidos no jogo de cartas marcadas que é a vida carioca. Quase todos os personagens, do mais honesto ao mais cruel, corrupto ou tolo, define-se como um elo, uma peça que muda constantemente de posição e, conseqüentemente, de papel e índole. Cada policial, cidadão ou bandido é um ser humano com uma história de vida particular.

Além disso, mesmo percorrendo o âmago da sordidez humana em busca de seus "porquês", o roteiro consegue fugir das típicas insinuações fatalistas de filmes semelhantes, quando, subconscientemente, envolve o espectador na guerra do tráfico, afirmando nas entrelinhas, e às vezes nas linhas mesmo, que somos todos parte dela, queiramos ou não. Ou nos omitimos, ou nos corrompemos ou entramos para a "guerra".



Uma das chaves para este anti-fatalismo é a perspectiva pela qual o Rio nos é esmiuçado. Quem conta a história é Nascimento, capitão da tropa alfa do comando de operações especiais da polícia militar, o bope, considerado por alguns o mais treinado esquadrão de combate urbano existente. Nascimento é inspirado numa figura real, o ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel, co-autor do livro Elite da Tropa e do roteiro do longa. Como Pimentel ou qualquer policial de carreira, Nascimento foi podado, esfolado e forjado nos confins do inferno, porém, diferentemente de tantos, tornou-se mais samurai do que demônio ou ovelha. Compreende que o Rio não é uma cidade de santos, mas se recusa a abandonar um certo senso de integridade que o ajuda a conviver com o caos. Ele e sua equipe são brutais, eficientes, implacáveis e assustadores como manda a função, mas virtuosos na medida do possível e orgulhosos do papel que exercem.



Numa era em que o cinema ocupa lugar de referência mítica do corpo social, Tropa de Elite consegue ser simultaneamente crítico e inspirador, analítico e ideológico, político e científico, realisticamente cínico, brutal, mas essencialmente otimista e engajado sem ufanismos. Seus personagens principais e coadjuvantes têm vida, falam por si enquanto o filme exerce opinião própria pelos protagonistas. Em suma, pontos de vista hegemônicos circulam entre diferentes "realidades individuais" que são expostas de modo elaborado o bastante para que possamos discordar constantemente de quem conta a estória, afinal, o próprio capitão Nascimento sofre pelos menos motivos.


Wagner Moura interpreta o capitão da tropa alfa.

Não posso também deixar de mencionar o ineditismo de um filme artisticamente relevante contado pela ótica militar, policial, um autêntico marco em nosso cinema, que aos poucos abandona a antiga postura revanchista pós-ditadura e também aquela velha ótica do oprimido intrinsecamente bom. Pré-determinar se os maconheiros de faculdade estão certos ou errados ao enrolar seu baseado é menos vital do que produzir referenciais múltiplos acerca da questão, mesmo no terreno da "alta-cultura", ainda dominado pela perspectiva "liberacionista" dos intelectuais. É bom saber que alguns deles estão arregaçando mangas, misturando-se com o cidadão comum e a realidade de "quem têm o pé no chão", passando-lhes o microfone e a palavra. Nosso Brasil ainda tem muito a ouvir do Brasil e o cinema pode ser um excelente canal.


Curiosidade:



Tal qual "capitão" Nascimento, o personagem André Matias é também inspirado num agente do Bope. André Baptista é o terceiro autor de Elite da Tropa e, como Pimentel, participou do documentario Ônibus 174, também dirigido por José padilha, concedendo declarações sobre o incidente retratado. Na ocasião, era ele quem chefiava o cerco policial e as negociações com Sandro Barbosa enquanto este ameaçava reféns dentro do ônibus. Se de 2002 (ano do documentário) para cá Bapstita podia ser visto com certa antipatia pelo trágico desfecho da operação ou pelo modo inclemente como se referia ao sequestrador, sua imagem pública tenderá a mudar após "Tropa de Elite".

De um jeito ou de outro, pretendo ir ao cinema assistir à versão final e incentivo quem já viu o filme a fazer o mesmo por vários motivos. Entre eles, o fato da versão corrente sequer estar finalizada; há falhas óbvias de acabamento em alguns cortes. É provável que vejamos cenas inéditas e até um desfecho diferente na versão final. Além disso, Padilha e os demais envolvidos merecem reconhecimento pelo grande trabalho que fizeram.




Neste trecho de 10 minutos do filme Ônibus 174, pode-se ver André Baptista e Rodrigo Pimentel concedendo depoimentos


Mais curiosidades:

O ator André Ramiro (que interpreta Matias) já foi escalado para um longa ficcional de Bruno Barreto sobre o incidente do 174, que retrata o mesmo tema documentado por Padilha em 2002. Ramiro fará o próprio André Baptista, embora no filme ele deva se chamar Souza. Baptista coordenou pessoalmente o trabalho do ator.



André Ramiro reconstitui as negociações entre Baptista e Sandro Barbosa no novo filme de Barreto.

Para quem leu este texto inteiro e ainda não viu o filme, não se preocupe. Pouco revelei sobre o enredo e as surpresas reservadas por Padilha nessa versão inacabada, e, não, não comprei cópia pirata do filme. Qualquer um pode assistir Tropa de Elite na íntegra pelo
youtube ou baixando na grande rede.


Links para o orkut dos atores do filme André Ramiro, Paulo Vilela, Fabio Lago e Rafael Teixeira.




texto tembém publicado nos sites Recanto das Letras e Domínio Cultural.

1 comment:

Surfista said...

Boa análise, rapaz! Acho que você pescou os pontos cruciais de "Tropa de Elite". Esse filme já é pauta de milhares de mesas de bar e a tendência é a multiplicação. Técnica, estética e artisticamente, é um filmaço.

Chamo sua atenção para o poder de interpretação do Olavo, digo, Wagner Moura. O cara transmite o dilema de ser pai e oficial de elite com todas as suas dúvidas, fraquezas e remorsos. Um dos atores mais promissores da sua geração.

Vi no pirataço e verei na telona.